O professor senta-se junto de um dos seus alunos. A janela está aberta e sente-se o ar frio do inverno na respiração. O professor quer dizer uma série de coisas, especialmente porque começam agora as férias de natal e sente que o menino está triste, que se sente sozinho. lembra-se de uma história persa que ouviu em criança e vira-se para o aluno:
- Disse Muqatil al - Rashid que quando divide um queijo ao meio fica com duas metades, mas quando divide um cabelo não fica com duas metades de cabelo, mas sim com dois cabelos. Há quem diga o mesmo do amor, que se for dividido em dois, como quando temos dois filhos, são dois amores inteiros e não um dividido por dois. E assim, também acontece quando se tem apenas um dos nossos progenitores. Apesar de um deles ter morrido, continuamos a ser amados de um modo total. Se retirares metade do infinito ao infinito, ficas com o infinito à mesma. Percebes o que te estou a dizer?
- Sim, diz o menino.
- Sei que o teu pai não está muito tempo em casa e sentes a falta da tua mãe...
- Não está.
- Mas não é motivo para tristezas e nem podes achar que ele gosta menos de ti por isso. É o trabalho, mas...
- Sim.
- Quando dividimos algumas coisas em dois, não obtemos metades. lembra-te disso, mas sim duas coisas inteiras. Repara: quando um homem divide um pão e um queijo com outro homem, não ficam duas metades de pão e queijo, mas sim duas refeições inteiras. A Matemática que se aprende na escola não inclui estas operações que estão mais de acordo com os nossos sentimentos e menos de acordo com os números. Compreendes o que te quero dizer?
- Sim.
O menino volta para casa enquanto o professor, com uma lágrima nos olhos, olha para ele.
Já é de noite e a casa está em silêncio. o menino abre os olhos quando ouve o pai chegar. Fica deitado, mas não consegue adormecer e passado uma hora, levanta-se da cama. Dirige-se à despensa e depois ao quarto do pai. Tira as algemas que estão penduradas no cinto que, por sua vez está pousado nas costas da cadeira onde o pai deixa a farda quando se vai deitar. O menino com gestos delicados, pega nas mãos do pai que dorme um sono pesado, de cansaço - nem sequer acorda com o barulho das algemas a fecharem - se junto à cabeceira da cama, apenas geme qualquer coisa e volta a ressonar. Só acorda quando sente uma dor aguda no flanco.
Ao tentar mexer os braços, não consegue, tenta mexer as pernas, mas estão atadas aos pés da cama. faz uns gestos bruscos para tentar libertar-se. O menino continua a serrar-lhe o flanco, apesar dos gritos. Só ao cabo de 12 minutos é que o pai desmaia e os gritos cessam. A cama está cheia de sangue e o menino continua a serrar até conseguir, passado hora e meia, dividir o pai em dois. O que obteve com aquela divisão, não foi um pai e uma mãe, como esperava, mas sim uma infinita solidão.
Duas Metades, Afonso Cruz (na edição nº 1075 do JL)